sábado, 10 de dezembro de 2011

Posfácio a “A Chave Dourada”

W. H. Auden, "Afterword". In: George MAcdonald, The Golden Key.
Farrar, Straus and Giroux, 1976. 

Por W. H. Auden

Todo ser humano normal está interessado em dois tipos de mundos: o mundo primário, cotidiano, que ele conhece através de seus sentidos, e um mundo Secundário, ou os mundos que não só pode criar em sua imaginação, mas que também não pode deixar de criar.


Uma pessoa incapaz de imaginar outro mundo além deste que lhe é dado pelos sentidos seria um subumano; uma pessoa que identificasse seu mundo imaginário com o mundo dos fatos sensíveis seria um louco.


Histórias sobre o mundo primário podem ser chamadas de ficção; histórias sobre o mundo secundário são chamadas de mitos ou contos de fadas. Uma história sobre o mundo primário, por assim dizer, pode ser imaginada – seus personagens e eventos podem ter sido “criados” pelo escritor –, mas a história toca o leitor da mesma maneira que uma narrativa histórica o faz: o leitor deve ser capaz de dizer a si mesmo “É verdade, eu já encontrei pessoas assim e sei pela experiência que é desse jeito que tais pessoas falam e agem”.


Os mundos secundários do mito e do conto de fadas, embora diferentes do mundo primário, pressupõem sua realidade. Como 
disse o professor Tolkien: “Se o homem não distinguisse entre homens e sapos, as histórias sobre sapos reis não teriam surgido”. Um mundo secundário pode estar cheio de seres extraordinários (fadas, gigantes, anões, dragões, mágicos, animais falantes), de objetos extraordinários (montanhas de cristal e castelos encantados), e eventos extraordinários podem ocorrer, como um homem vivo ser transformado em pedra ou um homem morto voltar à vida. Mas, assim como no mundo primário, ele deve, para ser convincente, parecer um mundo governado por leis, não pelo acaso. Seu criador, tal como o inventor de um jogo, está livre para decidir as regras, mas, uma vez decididas, sua história deve obedecê-las.


A maioria dos contos de fadas e mitos chegaram a nós de um passado pré-histórico, como histórias anônimas que não podem ser atribuídas à invenção consciente de nenhum autor individual. De tempos em tempos, no entanto, na memória histórica, escritores cujos nomes nós sabemos, parecem capazes de inventar tais histórias: Kafka, por exemplo, em seu século, e George Macdonald, o autor deste conto, no anterior. O dom desse tipo de criação mítica é difícil de definir e, aliás, é igualmente difícil descrever a satisfação que obras deste gênero nos dão. Como disse C. S. Lewis:


Chamá-lo [o gênio de Macdonald] de gênio literário parece insatisfatório, uma vez que pode coexistir uma grande inferioridade na arte das palavras – mais do que isso, uma vez que sua relação com as palavras é meramente externa e, até certo ponto, acidental. Tampouco [este gênio] pode ser enquadrado em qualquer das outras artes... Ele produz obras que nos dão (à primeira vista) tanto deleite e (com um entendimento mais profundo) tanta sabedoria e força quanto as obras dos maiores poetas...

Vai além da expressão de coisas que já sentimos. Suscita em nós sensações que nunca tivemos antes e nunca imaginamos ter... Toca-nos num ponto mais profundo do que nossos pensamentos ou mesmo nossas paixões... e, em geral, nos deixa mais completamente despertos do que estivemos durante a maior parte de nossas vidas.

A história, real ou fictícia, requer que o leitor esteja ao mesmo tempo dentro da história, partilhando dos sentimentos e eventos narrados, e fora dela, conferindo estes com a experiência. Um conto de fadas como “A Chave Dourada”, por outro lado, requer do leitor uma rendição total; assim que este adentra em seu mundo, deixa de haver qualquer outro para ele.


Em tempos recentes, sob a influência da psicologia moderna, os críticos adquiriram a mania da “caça ao símbolo”. Contudo, em minha opinião, as recompensas por tal caça jamais poderão ser mais que migalhas; no caso de histórias fictícias sobre o mundo primário, essa mania não pode aquecer, mas talvez possa, de vez em quando, iluminar.


Em contrapartida, a caça aos símbolos no conto de fadas é absolutamente fatal. Em “A Chave Dourada”, por exemplo, qualquer tentativa de “interpretar” a Vovozinha ou o peixe-aéreo ou o Velho Homem do Mar é fútil: eles representam o que são. A maneira, a única maneira, de ler um conto de fadas é a que foi prescrita por Tangle num estágio de sua jornada.

Então o Velho Homem da Terra parou sobre o chão da caverna, tomou uma pedra e deixou-a rolar. Assim ele descobriu um grande buraco que ia para baixo.

“É esse o caminho”, disse ele.

“Mas não há escadas”.

“Você deve lançar-se. Não há outro caminho”.

Para mim, o dom mais extraordinário e precioso de George Macdonald é sua capacidade, em todas as suas histórias, de criar uma atmosfera de bondade na qual não há nada de artificial ou de moralista. Nada é mais raro na literatura. Como observa Simone Weil:


O mal imaginário é fascinante e variado; o mal real é sombrio, monótono, estéril, tedioso. O bem imaginário é entediante; o bem real é novo, maravilhoso, inebriante. “Literatura imaginativa”, portanto, ou é chata, ou imoral, ou uma mistura de ambos.

Os contos de George Macdonald são uma prova de que este não é necessariamente o caso. É por isso que, embora haja muitos escritores muito melhores que ele, sua permanente importância na literatura está assegurada.

2 comentários:

Gabriele disse...

Oi William,
(Se é que foi você que desenvolveu esse blog.)
Que grande sacada! Você sabe o quanto C.S. Lewis deve ao autor e o quanto devo a C.S. Lewis e também ao autor. Parabéns!!!

Gabriele Greggersen

Leandro Amado disse...

Interpretação muito interessante da Chave de Ouro.