sábado, 31 de dezembro de 2011

George Macdonald em Português

O principal objetivo deste blog é divulgar a obra do pensador, escritor, poeta e pastor escocês George Macdonald. Em breve, aparecerão aqui traduções de excertos, ensaios e contos curtos do autor. Por ora, limitamo-nos a apresentar o que já há de Macdonald publicado em língua portuguesa. A lista tem a pretensão de ser exaustiva, mas isso não requer nenhum esforço hercúleo, pois trata-se de um autor quase completamente ignorado no Brasil.



Por enquanto, a única obra completa publicada em língua portuguesa é A Princesa e o Goblin, numa edição já esgotada da Editora Landy. Este mesmo livro também tem uma adaptação para o cinema, numa animação que também tem uma versão brasileira. Segundo G. K. Chesterton, esta a obra de Macdonald fez diferença em toda a sua existência, uma influência duradoura, que permaneceu válida mesmo após sua conversão. Trata-se de uma excelente porta de entrada aos escritos deste grande escritor. Talvez, com um pouco de sorte, os interessados consigam encontrar alguns exemplares em sebos ou na estante virtual.






Outra obra da pena do próprio Macdonald em português é o conto “The History of Photogen and Nycteris: A Day and Night Märchen”, sob o título O Menino Dia e a Menina Noite, publicado em Círculo dos Magos (Editora Bertrand Brasil). O volume é uma antologia infanto-juvenil de contos fantásticos em que constam autores como Phillip Pullman, E. Nesbit, Charles Dickens, H. G. Wells, Ray Bradbury, entre outros.






Como C. S. Lewis não se cansou de repetir, George Macdonald lhe foi uma espécie de mentor espiritual, embora toda essa mentoria tenha ocorrido estritamente por via literária. Em breve, publicaremos aqui a introdução de Lewis à antologia de Macdonald por ele organizada. Nesta introdução, C. S. Lewis paga seu tributo a este autor que tanto lhe ensinou e inspirou. No volume Biblioteca de C. S. Lewis, organizado por James Stuart Bell e Anthony P. Dawson, publicado no Brasil pela Editora Mundo Cristão, há alguns excertos de seus escritos devocionais. Vale como uma amostra de seu trabalho como “pastor” ou místico.



Na mesma linha de escritos de caráter devocional-espiritual, encontra-se um trecho de Criação em Cristo, sob o título “A causa da estupidez espiritual”. O volume organizado por Richard Foster e Emilie Griffin é uma antologia de “textos clássicos sobre as disciplinas [espirituais] interiores, exteriores e comunitárias”. O próprio Richard Foster menciona Macdonald com certa frequência em seus escritos e aqui inclui o texto de Macdonald na seção dedicada à disciplina do “Estudo”, umas das chamadas “Disciplinas interiores”, na terminologia empregada por Foster.

Pelo que me consta, isso é tudo!

Há dois outros livros que merecem ser mencionados, não por conterem textos de George Macdonald, mas sobre George Macdonald: Em Muito Mais que Palavras, organizado por Phillip Yancey e publicado pela Editora Vida, o texto que trata de Macdonald foi escrito por Madeleine L'Engle e tem como título “George Macdonald: Alimento para um mundo particular”. Neste texto, há o comovente testemunho pessoal da autora sobre como a descoberta de Macdonald foi determinante em sua formação e em sua obra de ficcionista.





O outro livro a que nos referimos é Perguntas que precisam de resposta, do qual publicamos aqui o texto de trata do autor a que esse blog se dedica.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Imaginação convertida




Por Phillip Yancey

C. S. Lewis disse, sobre o pregador e escritor de ficção escocês George MacDonald:

Não sei se conheço outro escritor que parece estar tão perto [...] do Espírito do próprio Cristo. [...] Suponho que nunca escrevi um livro no qual não o citasse.

Lewis afirmava que a obra Phantastes, de MacDonald, estimulara sua própria “conversão da imaginação”. Ao ter em vista o grande volume de obras escritas em tributo a C. S. Lewis, está mais do que na hora de prestarmos alguma atenção no homem que ele dizia abertamente ser seu mestre.

MacDonald combinou admiravelmente sua vida “secular” como romancista e homem de letras com seu chamado original de pregador do Evangelho. Entre seus amigos, havia pessoas notáveis, como Thackeray, Dickens, Arnold e Tennyson. Em uma viagem aos Estados Unidos, em 1873, fez palestras, sempre com enorme audiência, e conheceu Emerson, Longfellow, Whittier, Holmes e Harriet Beecher Stowe. Chegou a discutir com Mark Twain a possibilidade da coautoria de um romance, como defesa contra a pirataria dos direitos autorais que ambos enfrentavam. (Só se pode imaginar os resultados que adviriam de tal trabalho conjunto!) Outros amigos incluíam pintores da era anterior a Raphael, sua patrocinadora Lady Byron, o excêntrico crítico John Ruskin e o matemático de Oxford Charles Dodgson (Lewis Carroll).

Embora vivesse em uma época de grandes conflitos entre a ciência e a religião, George MacDonald não via separação entre o mundo “natural” e o “sobrenatural”. Ao falar sobre sua juventude, ele confessou:

Uma das minhas maiores dificuldades para concordar em pensar sobre religião foi que eu acreditava que precisaria desistir de meus belos pensamentos e de meu amor pelas coisas que Deus fez.

Em vez de ter que desistiu, ele descobriu que:

Deus é Deus da Beleza; Religião é o amor à Beleza; e o Céu é o lar da Beleza. A Natureza é dez vezes mais radiante sob o Sol da Justiça, e meu amor à natureza é mais intenso desde que me tornei cristão...

Este naturalismo cristão serviu para enriquecer as descrições sensoriais em suas obras.

Uma vez ele disse:

Conhecer uma prímula é muito melhor do que saber toda a botânica relacionada a ela, assim como conhecer Cristo é infinitamente melhor do que saber toda a teologia.

E os que o conheciam sabiam o que significa para ele conhecer a Cristo. Seu temperamento era alegre, divertido. Teve onze filhos e depois adotou mais dois, quando a mãe deles se encontrava em dificuldades financeiras tremendas. Sua casa era cheia de risadas das crianças e da conversa animada dos inúmeros hóspedes. (Um dos hóspedes frequentes na casa dos MacDonald, Lewis Caroll, imortalizou uma das filhas deles como um gatinho em sua obra Através do Espelho).

William Raeper, secretário da Sociedade George MacDonald, escreveu a biografia do autor, que contém inúmeras informações. Traz notícias triviais, como a maior nota na faculdade (Química!), e que aos 73 anos ele resolveu estudar holandês e espanhol. Ao tratar o valor da obra literária, afirma generosamente que o conjunto total das obras de MacDonald é maior do que cada uma delas individualmente. Dentre as vinte e seis novelas que escreveu, as mais duradouras são Phantastes e Lilith. Mas a análise de Raeper perde o vigor frente ao perfil literário convincente apresentado por C. S. Lewis no prefácio à antologia que escreveu sobre MacDonald. Lewis o exalta não pelo estilo – como muitas pessoas da era vitoriana, caía em moralidade açucarada –, mas pela capacidade de criar mitos. E, para Lewis, a percepção espiritual vista superficialmente nas novelas, mas bem evidente nos diários e sermões compilados é incomparável.

Ainda é possível ler sermões de MacDonald, em forma condensada e mais agradável a leitores modernos, graças a duas compilações feitas por Rolland Hein, intituladas Life Essentials e Creation in Christ. A carreira pastoral de MacDonald foi acidentada. Seus paroquianos afastaram-no do púlpito em face de sua crença no sentido de o inferno servir como uma espécie de purgatório que levasse a reconciliação final de toda a criação. As autoridades da igreja também se preocupavam com sua crença de terem os animais um lugar no céu e questionavam a influência sutil do idealismo alemão em sua teologia.

Próximo ao final de sua vida, porém, MacDonald conseguiu superar essas controvérsias e era bem recebido e amado como preletor convidado em muitas igrejas inglesas. Ao reagir contra o calvinismo rígido de sua juventude (assim como seu personagem Robert Falconer, ele estava “o tempo todo sentindo que Deus estava prestes a precipitar-se contra ele, se cometesse qualquer erro”) apresentava Deus como Pai amoroso e misericordioso. Um relacionamento idílico com seu próprio pai viúvo alimentou tal imagem. Sobre Deus, ele dizia que não era possível que uma criatura O conhecesse como Ele é e não desejasse estar com Ele. Confiante em que a bondade de Deus algum dia se espalharia por todo o Universo, praticava uma espécie de “fatalismo otimista” que aparece, por exemplo, em uma carta que escreveu para sua esposa, visando a consolá-la por um sofrimento: “Bem, este mundo, e todo o começo que há nele, se transformará em alguma coisa melhor”.

Ao conhecer MacDonald, vemos seus sermões sob uma luz inteiramente diversa. As palavras poderosas sobre graça, libertação da ansiedade e o amor inexorável de Deus vieram, na verdade, de uma vida cheia de dificuldades. Durante anos, MacDonald vagou por Londres, sem dinheiro, procurando emprego. Sofreu constantemente de tuberculose, asma e eczema. Dois de seus filhos morreram jovens. Mostrou-se incapaz de ser professor na universidade, e a grande vendagem de suas novelas raramente lhe trazia retorno financeiro: havia cópias demais no mercado pirata. A família voltou-se para a encenação de O Peregrino (o próprio MacDonald representava Greatheart) para conseguir pagar suas dívidas.

Estas dificuldades enfrentadas por ele só enfatizam o exemplo de fé deixado por um de nossos maiores escritores devocionais. A novela Phantastes termina com as folhas das árvores sussurrando:

Um grande bem está chegando, chegando, chegando para vós, Anodos.

George MacDonald cria nisto com todo seu coração, e aplicou essa lição à sua própria vida bem como a toda a história.


Phillip Yancey, "Imaginação Convertida", In: Perguntas que precisam de respostas. Trad. Cláudia Ziller Faria. Rio de Janeiro: Textus, 2001.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Chesterton apresenta George Macdonald





Por G. K. Chesterton


Introdução a George Macdonald and His Wife (1924), de Greville Macdonald

Disponível em inglês George Macdonald



Certas revistas têm simpósios (eu os chamarei simposia, se me for permitido chamar as duas coleções do South Kensington de musea) em que se pede às pessoas que nomeiem “Livros Que Me Influenciaram”, na mesma linha de “Hinos Que Me Ajudaram”. De regra, não é um processo realista, pois nossas mentes, na maioria das vezes, são uma vasta biblioteca não catalogada; em geral, quando um homem é fotografado com um livro nas mãos, na melhor das hipóteses, este foi escolhido aleatoriamente; na pior, está fazendo pose para impressionar. Mas, em certo sentido especial, posso realmente testemunhar que um livro fez diferença em toda a minha existência, que me ajudou desde o princípio a ver as coisas de certa maneira; uma visão das coisas que até mesmo uma verdadeira revolução, como uma conversão religiosa, substancialmente apenas coroou e confirmou. De todas as histórias que li, incluindo os demais romances do mesmo autor, esta continua sendo a mais real, a mais realista no exato sentido do termo – a mais parecida com a vida. Ela se chama A princesa e o Goblin, e seu autor é George MacDonald, o homem de que trata este livro.

Quando digo que é semelhante à vida, o que quero dizer é o seguinte: ele descreve uma princesinha que mora num castelo nas montanhas que, por assim dizer, é perpetuamente escavado por demônios subterrâneos que às vezes sobem à superfície através da adega. Ela sobe as escadas do castelo para ir ao quarto da governanta ou aos outros quartos; agora, no entanto, e uma vez mais, as escadas não levam ao destino usual, mas a um novo quarto que ela nunca vira antes e que em geral não pode encontrar de novo. Ali uma boa vovozinha, que é um tipo de fada madrinha, está perpetuamente fiando e falando palavras de sabedoria e incentivo. Quando li como criança, senti que tudo era um acontecimento dentro de uma casa humana real, não essencialmente diferente da casa em que eu mesmo vivia e que também tinha escadas, e quartos, e adega. Era aí que o conto de fadas diferia de muitos outros contos; acima de tudo, era aí que a filosofia diferia de muitas outras filosofias. Sempre senti certa insuficiência no ideal de progresso, mesmo o da melhor espécie, que é o Progresso do Peregrino. Dificilmente este sugere o quanto estão próximas de nós as melhores e as piores coisas desde o início; talvez especialmente no início. E embora, como toda pessoa sensata, eu valorize e respeite o conto de fadas comum do terceiro filho do moleiro que partiu para procurar sua sorte (uma forma que o próprio MacDonald seguiu na continuação chamada A princesa e Curdie), a sugestão de viajar para um mundo das fadas, distante, que é a alma dele, impede de atingir este fim particular que é transformar todas as escadas, e portas, e janelas comuns em coisas mágicas.

O Dr. Greville MacDonald, nestas memórias interessantíssimas de seu pai, creio, mencionou em algum lugar o sentido deste estranho simbolismo das escadas. Outra imagem recorrente em seus romances era um grande cavalo branco; o pai da princesa tinha um, e havia outro em The Back of the North Wind [Por trás do vento norte]. Até hoje, não posso ver um grande cavalo branco na rua sem uma repentina sensação de coisas indescritíveis. Mas, por ora, estou falando do que se pode enfaticamente chamar a presença de deuses domésticos – e de goblins domésticos. E a imagem da vida nesta parábola não é só mais verdadeira que a imagem de uma viagem, como a do Progresso do Peregrino; é sempre mais verdadeira do que a mera imagem de um lugar sitiado como o da Guerra Santa. Há algo não somente imaginativo, mas intimamente verdadeiro a respeito da ideia de goblins que estão debaixo da casa e que são capazes de importuná-la a partir da adega. Quando as coisas más que nos importunam de fato aparecem, elas não aparecem do lado de fora, mas de dentro. De alguma maneira, aquela simples imagem de uma casa que é o nosso lar, que é sinceramente amada como o nosso lar, mas da qual dificilmente conhecemos o melhor ou o pior e se deve sempre esperar por um deles e vigiar contra o outro, permaneceu em minha cabeça como algo particularmente sólido e irrefutável; e foi ainda mais confirmado que corrigido quando vim a dar um nome preciso à senhora que zela por nós desde a torre, e talvez a assumir uma visão mais prática dos goblins debaixo do piso. Desde que li pela primeira vez aquela história, cinco filosofias alternativas do universo chegaram às nossas faculdades, vindas da Alemanha, soprando o mundo como o vento leste. Mas, para mim, aquele castelo ainda permanece nas montanhas e a luz em sua torre não se extingue.

Todas as demais histórias de George MacDonald, interessantes e sugestivas de diversas maneiras, parecem ser ilustrações e até disfarces daquele único disfarce. Digo disfarce pois esta é a mais importante diferença entre o seu tipo de mistério e a mera alegoria. A alegoria comum toma o que considera lugares-comuns ou convenções necessárias para homens e mulheres comuns e tenta torná-los agradáveis ou pitorescos, vestindo-os como princesas, ou goblins, ou fadas. Mas George MacDonald, na verdade, acreditava que as pessoas eram princesas, e goblins, e fadas, e vestia-os como homens ou mulheres comuns. O conto de fadas estava dentro da história comum, não fora. Um resultado disso é que todos os objetos inanimados que são as propriedades do cenário da história retêm aquele encanto ignorado que têm num conto de fadas literal. As escadas em Robert Falconer são tão mágicas quanto as escadas em A princesa e o Goblin; e quando os meninos estão construindo o barco, e a menina está recitando versos para eles, em Alec Forbes, e alguns velhos cavalheiros dizem em tom de galhofa que ele se erguerá para cantar como um navio mágico escandinavo, sempre me parece como se ele estivesse descrevendo a realidade do incidente, sem levar em conta a aparência. Os romances, como romances, são irregulares; mas como contos de fadas são extraordinariamente coerentes. Ele nunca, nem por um momento, perde o fio interior que corre pela colcha de retalhos, e é o fio que a vovozinha põe nas mãos de Curdie para tirá-lo das armadilhas dos goblins.

A originalidade de George MacDonald tem também um significado histórico, que talvez seja mais bem estimada em comparação com seu grande conterrâneo [Thomas] Carlyle. É uma medida do poder real e até da popularidade do Puritanismo na escócia que Carlyle nunca tenha perdido o temperamento puritano, mesmo depois de perder toda a teologia puritana. Se uma fuga da tendência dominante do ambiente for um teste de originalidade, Carlyle nunca escapou por completo, mas George Macdonald, sim. Ele desenvolveu, a partir de suas próprias meditações místicas, uma teologia alternativa completa que levava a um temperamento completamente oposto. Nessas meditações místicas ele aprendeu segredos que vão muito além da mera indignação puritana com a ética e com a política. Pois no gênio real de Carlyle havia um toque de intimidação, e onde quer que haja um elemento de intimidação há um elemento de banalidade, de reiteração e de ordens repetidas. Carlyle nunca pôde dizer nada tão sutil e simples como a frase de MacDonald de que “Deus é fácil de agradar e difícil de satisfazer”. Carlyle estava obviamente ocupado demais com a insistência em que Deus era difícil de satisfazer; exatamente como alguns otimistas estão, sem dúvida, ocupados demais em insistir que Ele é fácil de agradar. Em outras palavras, MacDonald tinha criado para si mesmo um tipo de ambiente espiritual, um espaço e uma transparência de luz mística, que era absolutamente excepcional em seu ambiente nacional e denominacional. Ele disse coisas semelhantes aos ditos dos cavaleiros místicos, dos santos católicos, algumas vezes dos platônicos ou swedenborgianos, mas pelo menos não aos dos calvinistas, mesmo quando o calvinismo permanecia em um homem como Carlyle. E quando ele vier a ser mais cuidadosamente estudado como um místico, como acho que o será quando as pessoas descobrirem a possibilidade de recolher suas joias dispersas em um conjunto muito irregular, perceber-se-á, imagino, que ele se posta antes como um ponto de mutação na história da Cristandade, como um representante da nação cristã da Escócia. Como os protestantes falam das estrelas da manhã da Reforma, devemos estar autorizados a notar tais nomes aqui e ali como as estrelas da Reunião.

A coloração espiritual da Escócia, como a cor local de tantos sarracenos escoceses, é um roxo que sob algumas luzes pode parecer cinza. A característica nacional é, na realidade, intensamente romântica e apaixonada; é, na verdade, excessiva e perigosamente romântica e apaixonada. Sua torrente emocional com muita frequência tem-se dirigido apenas à vingança, ou à luxúria, ou à crueldade ou à bruxaria. Não há embriaguês como a embriaguês escocesa; ela tem em si o barulho antigo e a estridência selvagem dos Mênades das montanhas. E, claro, é igualmente verdade quanto ao lado bom, como na grande literatura da nação. Stopford Brooke e outros críticos apontaram com razão que um senso vívido de cores aparece nos poetas escoceses medievais antes de este aparecer de fato em qualquer poeta inglês. E é absurdo falar da dura e perspicaz sobriedade de um tipo nacional que se tem feito mais bem conhecido por toda parte no mundo moderno pelo literalismo prosaico da Ilha do Tesouro e o realismo monótono de Peter Pan. No entanto, por um estranho acidente histórico, este povo vívido e colorido foi forçado a “vestir-se de preto” numa espécie de funeral sem fim num eterno Sabá. Na maioria das peças e quadros, entretanto, em que eles são representados vestidos de preto, alguns instintos fazem o ator ou o artista ver que eles não combinam muito bem. E assim o fazem.

Os escoceses apaixonados e poéticos – como os italianos apaixonados e poéticos –devem, obviamente, ter tido uma religião que competia com a beleza e a vivacidade das paixões, que não deixava o diabo ter todas as cores brilhantes, que respondia glória com glória e fogo com fogo. Isso deveria ter equilibrado Leonardo com São Francisco; nenhum jovem ou pessoa viva realmente pensa que se pode equilibrar isso com John Knox. A consequência foi que esta potência nas letras escocesas, especialmente no dia (ou noite) da plena ortodoxia calvinista, foi enfraquecida e desperdiçada centenas de vezes. Em Burns, ela foi levada para fora de seu curso como loucura; em Scott, era tolerada somente como memória. Scott só podia ser um medievalista tornando-se o que ele viria a chamar um antiquário, ou o que chamaríamos um esteta. Ele tinha de fingir que seu amor estava morto para que fosse autorizado a amá-lo. Assim como Nicodemos foi até Jesus à noite (ver Jo 3:1), o esteta somente vai à igreja à noite.

Agora, entre os muitos homens de gênio que a Escócia produziu no século XIX, havia apenas um tão original a ponto de voltar a sua origem. Havia apenas um que realmente representava o que a religião escocesa deveria ter sido, se tivesse mantido a coloração da poesia escocesa medieval. Em seu tipo particular de obra literária, ele de fato percebeu o aparente paradoxo de um São Francisco de Aberdeen, vendo o mesmo tipo de halo em torno de uma flor e de um pássaro. Não é a mesma coisa que a apreciação que o poeta faz da beleza da flor ou do pássaro. Um bruto pode sentir isso e continuar bruto, ou, em outras palavras, continuar triste. É certo senso especial de significância, que a tradição que mais a valoriza chama sacramental. Ter voltado para isso, ou avançado para isso, num salto de meninice, para fora do negro Sabá de uma cidade calvinista, foi um milagre de imaginação.

Ao notar que ele bem pode ter este lugar na história, no sentido da religião e da história nacional, não tento aqui fixar seu lugar na literatura. Em todo caso, ele é um dos tipos mais difíceis de classificar. Ele não escreveu nada vazio; mas escreveu muito do que é cheio demais e cuja apreciação depende antes de uma simpatia com a substância do que à primeira vista com a forma. De fato, os místicos não são com frequência homens de letras em seu sentido perfeito e quase profissional. Um homem cuidadoso encontrará mais sobre o que pensar em Vaughan ou Crashaw que em Milton, mas também encontrará muito que criticar; e ninguém precisa negar que, no sentido comum, um leitor casual pode desejar que haja menos Blake e mais Keats. Mas mesmo essa indulgência não deve ser exagerada; e é exatamente no mesmo sentido em que lastimamos um homem que ignora tudo de Keats ou de Milton que podemos sentir compaixão pelo crítico que não caminhou na floresta de Phantastes ou não tomou conhecimento do Sr. Cupples nas aventuras de Alec Forbes.

George Macdonald e sua obra



Por G. K. Chesterton

Um a um, os grandes romancistas da era vitoriana têm renascido para a democracia na forma de edições populares, de modo que, agora, qualquer aspirante a limpador de chaminés pode ter o núcleo de uma biblioteca muito boa por apenas alguns xelins. Há um escritor a quem o Sr. Newnes[1] só notou dessa maneira e que é, salvo engano, um dos homens mais notáveis de nosso tempo. O Dr. George MacDonald será redescoberto um dia, como Blake[2] o foi – um outro homem de gênio, embora artisticamente imperfeito. Até lá, porém, ele será, também como Blake, negligenciado, desprezado e explorado industrialmente por pessoas que querem tomar emprestadas algumas ideias. Se ser um grande homem é manter o universo em sua cabeça ou em seu coração, o Dr. MacDonald é grande. Nenhum homem traz consigo uma atmosfera heroica com tanta naturalidade. Certa vez, ele encenava o papel de Generoso, personagem de “O peregrino”[3], e a mera possibilidade de que isso acontecesse já é simbólica, pois não tal coisa seria possível a qualquer outro homem moderno. O ideal de Matthew Arnold[4] numa armadura reluzente ou do professor Huxley[5] movendo uma espada diante da ribalta não nos impressionaria com gravidade genuína. Mas o Dr. MacDonald parecia uma figura elementar, um homem desligado de qualquer época particular, uma personagem de um de seus próprios contos de fadas, um verdadeiro místico a quem o sobrenatural era natural.


Muitos escritores religiosos escreveram alegorias e contos de fadas que deram origem à convicção geral de que nada mostra tão pouca espiritualidade quanto uma alegoria, e nada contém tão pouca imaginação quanto um conto de fada. Mas o Dr. MacDonald está separado destes por um abismo de profunda originalidade de intenção. A diferença é que o conto de fadas comum é uma alegoria da vida real. Os contos da vida real do Dr. MacDonald são alegorias, ou versões disfarçadas, de seus contos de fadas. Não é que ele veste os homens e os incidentes como cavaleiros e dragões, mas ele considera que os cavaleiros e dragões, de fato existentes no mundo eterno, estão aqui vestidos como homens e incidentes. Para ele, não é a coroa, o capacete e a auréola que são a fantasia; é a cartola e o fraque que são, digamos, o disfarce dos conspiradores no palco terrestre. Seus contos alegóricos de gnomos e grifos não encobrem com um véu; eles o rasgam. Num desses estranhos livros meio indecifráveis, como o livro de um profeta, publicado por ele já em idade avançada, o herói é apresentado como uma gloriosa roseira, e diz-se que ela permaneceu no mesmo lugar, como um piano numa sala de visitas. Compreender essa ideia é compreender George MacDonald, desde que nos lembremos de que não é a roseira que é o símbolo, mas o piano.


No livro com que o Sr. Newnes iniciou a publicação popular da obra do Dr. MacDonald, “O Marquês de Lossie”, isso fica muito claro. Não é uma de suas melhores obras; artisticamente falando, está repleta de defeitos. Mas quase todos os defeitos de seu romance são as virtudes de um conto de fadas. A clareza da questão ética, a guerra límpida da luz contra as trevas, sem lusco-fusco, ceticismo ou timidez; o senso elementar da paisagem e do homem como filho da Natureza, o heroísmo imaculado dos heróis, a patente deformidade dos personagens maléficos; tudo isso, enfim, mostra um espírito alerta ao mundo com o olhar jovem, inocente e terrível de Jack, o Matador de Gigantes.[6] O Dr. MacDonald é um poeta bom demais para ser um romancista do mais alto grau, pois a glória do romancista é olhar para o mundo de centenas de pontos de vista; a glória do poeta é vê-lo desde um único. O Dr. MacDonald vê o mundo banhado num terrível carmesin de amor divino. Ele não é capaz de descrever o cínico melhor do que Shelly[7] poderia ter descrito um merceeiro batista ou Keats[8], um comerciante da cidade. Os vilões da moda no romance do Dr. MacDonald não são as bestas do campo, fúteis, bem-humoradas e previsíveis – tão dignas e calmas quanto as vacas – que tais homens realmente são. Eles são ininteligíveis, criaturas feias, como os dragões de um conto de fadas que devoram donzelas por um capricho sobrenatural. Eles existem para ser combatidos, não estudados.


Mas o ponto interessante sobre “O Marquês de Lossie”[9] é que este contém todo o segredo da obra do Dr. MacDonald: é a história de um jovem pescador escocês que, em sua invencível simplicidade e honra, vai a uma casa da moda em Londres, a fim de resgatar uma elegante dama (que ele sabe ser sua meia-irmã) de um infeliz casamento de conveniência. A história, como eu disse, não é contada com a plenitude da arte do Dr. MacDonald. É difícil apontar uma única cena que esteja perfeitamente proporcionada, e na qual não haja filosofia demais e psicologia de menos, embora toda a história seja tão vívida e tensa como uma história policial. Nós a lemos com um profundo sentimento de que algo grandioso nos excita, e não podemos dizer o que é. Isso só vai ficar claro para nós se acontecer de nos lembrarmos do grande conto de fadas de MacDonald, “A princesa e Curdie”[10]. Trata-se da história de um menino garimpeiro que, sob as instruções misteriosas de uma fada-vovozinha, parte para salvar um rei e uma princesa dos planos de uma cidade monstruosa e má. De repente, percebemos que as duas histórias são a mesma, que uma se passa dentro da outra, e que o romance realista é a concha e o conto de fadas é a pérola. Toda a estranheza, toda a digressão, toda a indelicadeza e toda a lerdeza do incidente simplesmente querem dizer que o herói almeja jogar fora o chapéu preto e o casaco de Mawlcolm MacPhail e declarar-se como Curdie, o campeão das fadas. Toda a emoção da história reside no fato de que sabíamos que ele era assim.


O Dr. MacDonald entra no reino das fadas como um cidadão que volta para casa. Mas, embora seja um místico genuíno e um genuíno celta, ele não reapareceu no movimento do misticismo celta de nossos dias[11], sobretudo por causa de uma ideia singular que dominou tal movimento: a ideia de que o dever de um místico é ser melancólico. Levará um século ou dois, talvez, para que se perceba uma verdade que o Dr. MacDonald, imagino, sempre soube: a melancolia é uma bobagem se comparada à seriedade da alegria. A melancolia é negativa e tem a ver com trivialidades como a morte; a alegria é positiva e tem a resposta para o renovo e para a perpetuação do ser. A melancolia é irresponsável. Ela pode assistir ao universo cair em pedaços; a alegria é responsável e sustenta o universo no vazio do espaço. Essa concepção de vigilância do Poder universal permeia todos os romances de MacDonald com uma insondável gravidade de completa felicidade, a gravidade de uma criança que brinca. Um brilho curioso impregna seus livros: as flores parecem chamas coloridas soltas do coração flamejante do mundo – cada arbusto é uma sarça ardente, ardendo pela mesma razão que a de Moisés. Este sentido de um segredo perfeito quase dolorosamente mantido pelo universo é o que envergonha o fastio dos místicos modernos. Como se alguém que soubesse um segredo pudesse estar enfastiado!


Há outra questão artística em que o Dr. MacDonald deu uma contribuição profundamente original, e numa direção nunca seguida. Trata-se de sua percepção do grotesco no mundo espiritual. Ele escreveu poemas infantis cheios de um tipo de anarquia noturna, como os sonhos absurdos. A coruja diz:

I can see the wind; now who can do that?
I can see the dreams that he has in his hat.
Who else can watch the Lady Moon sit
On her nest the sea, all night, but the Owl?

[Posso ver o vento. Quem mais o pode ver?
Posso ver os sonhos que sua cachola pode ter.
Quem, senão a coruja, pode ver a Lua pousar
toda noite em seu ninho sobre o mar?]

Esse casamento extravagante de ideais não tem um sacerdote que o possa celebrar, exceto a livre imaginação. Mas a originalidade do Dr. MacDonald reside nisto: enquanto outros autores modernos escreveram histórias de nonsense, ele é o único que tem escrito o que se pode chamar de “nonsense celestial”. O mundo de “Alice no País das Maravilhas” é de uma loucura puramente intelectual: há ocasiões que, de fato, devem ocorrer a qualquer homem de imaginação: momentos em que de repente alguém se sente desprotegido e aterrorizado num mundo de loucura matemática, quando se sente que a desrazão é mais fria e mais cruel que a razão e quando se percebe a profunda verdade de que nada no mundo é tão desolador quanto a leveza ilimitada. Mas o mundo de extravagâncias do Dr. MacDonald, onde a lua choca os navios e as ostras se abrem para cantar, é penetrado pelo calor do “amor do mundo”, a irmandade cósmica das crianças. Até os monstros são bichinhos de estimação neste enorme berçário.


Como eu disse, o Dr. MacDonald será descoberto nalgum tempo por vir. Há homens e movimentos cujo momento em que passaram estão no ponto mais distante de nós, como um ponto de uma roda que acaba de tocar ao chão. Estamos vivendo agora entre poetas incapazes de conceber o poder universal contido em sentimentos maiores que os deles mesmos. Não podem imaginar, nas palavras grandiloquentes de Dante, “o amor que dirige o sol e as estrelas”, pois o amor sobre o qual escrevem seria incapaz de dobrar um cardo; mas o grande pensamento que o Dr. MacDonald diz, mas deixa não dito, num nó de otimismo fatalista nunca deixará completamente de nos assombrar e nos atacar.


Numa centena de momentos ímpares, em ruas tortuosas, nos campos sob o crepúsculo, nas salas de visitas à luz de velas, virá sobre nós a noção confusa, e ainda assim reconfortante, de que nós e todas as nossas filosofias nacionalistas estão no coração de um conto de fadas e desempenha nele um papel excepcionalmente bobo.

[1] Sir George Newnes, notável editor inglês. Informações: http://en.wikipedia.org/wiki/George_Newnes

[2] Poeta inglês William Blake. Mais informações: http://en.wikipedia.org/wiki/William_blake

[3] The Pilgrims Progress, de John Bunyan. Há diversas edições em língua portuguesa. Uma edição comentada foi publicada pela editora Fiel: http://www.editorafiel.com.br/detalhes.php?id=2034

[4] Poeta e crítico cultural inglês: http://en.wikipedia.org/wiki/Matthew_Arnold

[5] Provavelmente o escritor Leonard Huxley, pai de Aldous Huxley. Informações: http://en.wikipedia.org/wiki/Leonard_Huxley_(writer)

[6] Conto de fadas britânico: http://en.wikipedia.org/wiki/Jack_the_Giant_Killer

[7] Referência ao poeta britânico Percy Bysshe Shelley. Mais informações: http://en.wikipedia.org/wiki/Percy_Bysshe_Shelley

[8] Poeta inglês John Keats. Mais informações: http://en.wikipedia.org/wiki/John_Keats

[9] Texto na íntegra: http://www2.hn.psu.edu/faculty/jmanis/gmacdonald/The-Marquis-of-Lossie6x9.pdf

[10] Texto integral disponível em: http://www2.hn.psu.edu/faculty/jmanis/gmacdonald/The-Princess-and-Curdie6x9.pdf

[11] Lembre-se, Chesterton está escrevendo em 1901.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Posfácio a “A Chave Dourada”

W. H. Auden, "Afterword". In: George MAcdonald, The Golden Key.
Farrar, Straus and Giroux, 1976. 

Por W. H. Auden

Todo ser humano normal está interessado em dois tipos de mundos: o mundo primário, cotidiano, que ele conhece através de seus sentidos, e um mundo Secundário, ou os mundos que não só pode criar em sua imaginação, mas que também não pode deixar de criar.


Uma pessoa incapaz de imaginar outro mundo além deste que lhe é dado pelos sentidos seria um subumano; uma pessoa que identificasse seu mundo imaginário com o mundo dos fatos sensíveis seria um louco.


Histórias sobre o mundo primário podem ser chamadas de ficção; histórias sobre o mundo secundário são chamadas de mitos ou contos de fadas. Uma história sobre o mundo primário, por assim dizer, pode ser imaginada – seus personagens e eventos podem ter sido “criados” pelo escritor –, mas a história toca o leitor da mesma maneira que uma narrativa histórica o faz: o leitor deve ser capaz de dizer a si mesmo “É verdade, eu já encontrei pessoas assim e sei pela experiência que é desse jeito que tais pessoas falam e agem”.


Os mundos secundários do mito e do conto de fadas, embora diferentes do mundo primário, pressupõem sua realidade. Como 
disse o professor Tolkien: “Se o homem não distinguisse entre homens e sapos, as histórias sobre sapos reis não teriam surgido”. Um mundo secundário pode estar cheio de seres extraordinários (fadas, gigantes, anões, dragões, mágicos, animais falantes), de objetos extraordinários (montanhas de cristal e castelos encantados), e eventos extraordinários podem ocorrer, como um homem vivo ser transformado em pedra ou um homem morto voltar à vida. Mas, assim como no mundo primário, ele deve, para ser convincente, parecer um mundo governado por leis, não pelo acaso. Seu criador, tal como o inventor de um jogo, está livre para decidir as regras, mas, uma vez decididas, sua história deve obedecê-las.


A maioria dos contos de fadas e mitos chegaram a nós de um passado pré-histórico, como histórias anônimas que não podem ser atribuídas à invenção consciente de nenhum autor individual. De tempos em tempos, no entanto, na memória histórica, escritores cujos nomes nós sabemos, parecem capazes de inventar tais histórias: Kafka, por exemplo, em seu século, e George Macdonald, o autor deste conto, no anterior. O dom desse tipo de criação mítica é difícil de definir e, aliás, é igualmente difícil descrever a satisfação que obras deste gênero nos dão. Como disse C. S. Lewis:


Chamá-lo [o gênio de Macdonald] de gênio literário parece insatisfatório, uma vez que pode coexistir uma grande inferioridade na arte das palavras – mais do que isso, uma vez que sua relação com as palavras é meramente externa e, até certo ponto, acidental. Tampouco [este gênio] pode ser enquadrado em qualquer das outras artes... Ele produz obras que nos dão (à primeira vista) tanto deleite e (com um entendimento mais profundo) tanta sabedoria e força quanto as obras dos maiores poetas...

Vai além da expressão de coisas que já sentimos. Suscita em nós sensações que nunca tivemos antes e nunca imaginamos ter... Toca-nos num ponto mais profundo do que nossos pensamentos ou mesmo nossas paixões... e, em geral, nos deixa mais completamente despertos do que estivemos durante a maior parte de nossas vidas.

A história, real ou fictícia, requer que o leitor esteja ao mesmo tempo dentro da história, partilhando dos sentimentos e eventos narrados, e fora dela, conferindo estes com a experiência. Um conto de fadas como “A Chave Dourada”, por outro lado, requer do leitor uma rendição total; assim que este adentra em seu mundo, deixa de haver qualquer outro para ele.


Em tempos recentes, sob a influência da psicologia moderna, os críticos adquiriram a mania da “caça ao símbolo”. Contudo, em minha opinião, as recompensas por tal caça jamais poderão ser mais que migalhas; no caso de histórias fictícias sobre o mundo primário, essa mania não pode aquecer, mas talvez possa, de vez em quando, iluminar.


Em contrapartida, a caça aos símbolos no conto de fadas é absolutamente fatal. Em “A Chave Dourada”, por exemplo, qualquer tentativa de “interpretar” a Vovozinha ou o peixe-aéreo ou o Velho Homem do Mar é fútil: eles representam o que são. A maneira, a única maneira, de ler um conto de fadas é a que foi prescrita por Tangle num estágio de sua jornada.

Então o Velho Homem da Terra parou sobre o chão da caverna, tomou uma pedra e deixou-a rolar. Assim ele descobriu um grande buraco que ia para baixo.

“É esse o caminho”, disse ele.

“Mas não há escadas”.

“Você deve lançar-se. Não há outro caminho”.

Para mim, o dom mais extraordinário e precioso de George Macdonald é sua capacidade, em todas as suas histórias, de criar uma atmosfera de bondade na qual não há nada de artificial ou de moralista. Nada é mais raro na literatura. Como observa Simone Weil:


O mal imaginário é fascinante e variado; o mal real é sombrio, monótono, estéril, tedioso. O bem imaginário é entediante; o bem real é novo, maravilhoso, inebriante. “Literatura imaginativa”, portanto, ou é chata, ou imoral, ou uma mistura de ambos.

Os contos de George Macdonald são uma prova de que este não é necessariamente o caso. É por isso que, embora haja muitos escritores muito melhores que ele, sua permanente importância na literatura está assegurada.